Por peritos criminais federais Jorge Marcelo de Freitas, Meiga Aurea Mendes Menezes , Rodrigo Ribeiro Mayrink e Luiz Spricigo Jr.
Partes de um corpo, sem a cabeça e sem resultados positivos para identificação papiloscópica, são encontradas em Dublin, Irlanda, no ano de 2005. Descobre-se que provavelmente a pessoa assassinada era originária do nordeste da África e que havia migrado para a Irlanda em torno de 6 anos antes de sua morte. Essas informações facilitam a posterior identificação da vítima e a subsequente prisão dos assassinos. Anos mais tarde, do outro lado do globo, no sudeste asiático, grandes carregamentos de marfim são apreendidos por autoridades policiais e aduaneiras. Cientistas forenses passam então a trabalhar para rastrear a origem do material, auxiliando, assim, na desarticulação de poderosas máfias internacionais de tráfico de animais.
Em 2012, na cidade de Leicester, Inglaterra, ossadas encontradas em escavações em um estacionamento são atribuídas a Ricardo III, um dos mais famosos e controversos reis da Inglaterra. Seus ossos servem também para arqueólogos forenses descobrirem que sua alimentação, marcada por alto teor de proteína animal (algo raro na época de seu reinado, no final do século XV), era digna de uma “dieta da alta nobreza”. Enquanto isso, organismos internacionais como a FAO (Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas) e a Agência Internacional de Energia Atômica monitoram rotas migratórias de aves silvestres, em escala global, para controlar a disseminação de cepas do vírus da Influenza Aviária altamente patogênicas ao ser humano, prevenindo, assim, pandemias graves como as da Covid-19. E mais recentemente, no Brasil, pesquisadores da UFAM, INPA, UnB e USP, em parceria com peritos da Polícia Federal, estudam a distribuição territorial de árvores amazônicas buscando rastrear a origem de madeira ilegal apreendida e ajudando, com isso, a coibir o desmatamento clandestino.
Todos esses casos, aparentemente desconexos entre si, são marcados pela multidisciplinaridade de técnicas forenses. Especificamente, todos eles foram ou estão sendo resolvidos com a conjugação das análises de dois marcadores naturais dos seres vivos: um químico – os isótopos estáveis – e um genético – o DNA; duas abordagens que, como se pretende demonstrar, são complementares e sinérgicas.
O primeiro relato de uma identificação forense através da genética data do ano de 1985 e, desde então, ela vem cada vez mais se estabelecendo como uma importante disciplina forense. Trinta e cinco anos depois, constata-se, no entanto, que esse não foi um caminho fácil: talvez nenhuma outra técnica tenha passado por um escrutínio tão intenso pela Justiça como o DNA. Isso, porém, a consolidou como um dos mais robustos meios de prova da criminalística. Hoje a genética forense conta com o reconhecimento da comunidade científica e ampla aceitação em tribunais em mais de 80 países, incluindo alguns cujos sistemas judiciários possuem o mais alto nível de exigência quanto aos critérios de admissibilidade de evidências (EUA, Alemanha e Reino Unido, entre outros). De fato, a evidência genética – prova baseada no exame de DNA forense – vem sendo utilizada em diversos casos de repercussão, inclusive na International Court of Justice, comumente conhecida como Corte Internacional de Haia; por exemplo, no julgamento de aplicação da Convenção e Punição do Crime de Genocídio, perpetrado pela Croácia contra a Sérvia, e também no julgamento de pesca ilegal de baleias na Antártica (Austrália vs. Japão).
A consolidação da evidência genética como uma prova técnica robusta em tribunais, e sua consequente disseminação como ferramenta pericial, tem como pilar o forte embasamento científico do método, acumulado em décadas de pesquisas em outras aplicações além da forense. Este foi o grande diferencial em relação a algumas outras metodologias da criminalística na análise crítica feita pelo famoso relatório da Academia Americana de Ciências em 2009, que chamou a atenção do setor forense dos EUA e do mundo a respeito da necessidade de rigor científico para a geração e interpretação da prova pericial. Encomendado pelo Senado americano e conduzido por dezenas de profissionais entre pesquisadores, juízes, peritos, promotores e policiais, o estudo ressaltou a importância da validação das metodologias bem como a apresentação do grau de incerteza das conclusões periciais. Nesse relatório, as perícias baseadas em evidência genética foram atestadas como “padrão ouro” no que tange à segurança científica para admissibilidade jurídica. De fato, as recomendações desse estudo ultrapassaram as fronteiras dos EUA e vem influenciando significativamente os institutos forenses de vários países, incluindo o Brasil.
A técnica de isotopia, por sua vez, começou a ser utilizada com mais intensidade para fins forenses em meados da virada do século XX para XXI. Pesquisadores americanos, em um artigo de revisão publicado no periódico jurídico da Universidade de Utah, citam vários casos em que sistemas judiciais embasaram decisões em resultados de perícias isotópicas, tais como: os homens-bomba Richard Reid (que em 2001 tentou detonar uma bomba no voo 63 da American Airlines de Paris para Miami) e Saajid Badat (que planejou outro atendado em um avião em 2003); o banimento por dois anos do ciclista Floyd Landis, por ter utilizado testosterona sintética para competir no Tour de France em 2006; e os atentados com anthrax (esporos da bactéria Bacillus anthracis) enviados pelos correios a autoridades americanas após o 11 de setembro (Caso Amerithrax).
Nesse estudo, os isótopos são comparados ao DNA para fins de adequação aos critérios de admissibilidade de evidências criminais da corte americana. As duas abordagens possuem similaridades e diferenças: ambas as técnicas são usadas nas aplicações forenses para tentar responder se uma amostra questionada e uma amostra de referência (o que, em ambos os casos, pode também consistir em bancos de dados) possuem a mesma origem, ou seja: convergem entre si. Os autores discutem que se por um lado as probabilidades de valoração da evidência são maiores na genética, os isótopos forenses podem ser usados em um número maior de vestígios, incluindo aqueles não biológicos (que, portanto, não contém DNA). A principal conclusão do trabalho é que, assim como na análise de identificação por DNA, a ciência é a base da construção das evidências isotópicas, fornecendo um sólido ponto de partida para seu uso em Cortes de Justiça.
DNA e isótopos são dois marcadores naturais fascinantes, e seu entendimento pela ciência desvenda fenômenos que há séculos intrigam o ser humano. Para fins forenses, na maioria dos casos eles assumem papéis complementares: em linhas gerais, enquanto o DNA aponta “quem é”, os isótopos dizem “de onde veio”. No exemplo do corpo mutilado em Dublin, a análise de isótopos estáveis em amostras do fêmur atribuiu a provável origem geográfica da vítima ao nordeste da África, ao mesmo tempo em que estimou a data da sua migração para a Irlanda para algo em torno de 6 anos antes da morte. De acordo com o oficial de investigação, os resultados da análise isotópica forense forneceram a justificativa necessária para realizar o teste de DNA de uma criança que se acreditava ser filha da vítima, e o resultado foi positivo. O falecido, que namorava a mãe de seus (até então) supostos assassinos, era um homem de 39 anos, originário do Quênia, que emigrou para a Irlanda em 1998 fugindo da guerra civil que assolava aquele país; ou seja, sete anos antes de sua morte. Uma vez que a identidade da vítima foi estabelecida, chegou-se às duas assassinas, apelidada de “Scissor Sisters”, que foram condenadas à prisão perpétua pelo crime.
A publicação de mais de 1.000 artigos científicos sobre isótopos forenses em periódicos internacionais nos últimos 20 anos, gerando mais de 20.000 citações (2.600 apenas em 2019), demonstra que, assim como ocorreu com o DNA, os isótopos trilham uma vigorosa rota ascendente para se consolidar como ferramenta pericial de primeira grandeza. Treze países do mundo desenvolvido já incorporaram a tecnologia isotópica em seus institutos forenses; um seleto grupo ao qual o Brasil passa agora a pertencer, com a criação do Laboratório Nacional de Isótopos Forenses – LANIF – no Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal.
A experiência pregressa que a comunidade pericial brasileira – e a Polícia Federal, em particular – possuem com todos os desafios (enfrentados e superados) da implementação da técnica de DNA serão de grande valia para a guiar a condução dos isótopos forenses, sua “técnica-irmã”. No horizonte, acendem as luzes da necessidade de geração e integração de bancos de dados e da implementação de sistemas de qualidade.
O ano de 2020 representa um marco na história da ciência isotópica forense no Brasil. A partir de agora – e, pelos rumos que hoje se delineiam, cada vez mais intensamente nos próximos anos – a Justiça brasileira terá mais uma importante ferramenta pericial para elucidação de crimes. O fortalecimento da prova material com a utilização de isótopos forenses, juntamente com o DNA e as demais técnicas já consagradas da criminalística, irá aumentar a capacidade da perícia criminal em indicar autoria e materialidade, bem como evitar condenações equivocadas, contribuindo assim para a redução da impunidade e para maior segurança e eficácia do sistema de justiça criminal.
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