A história da perícia contada por um dos pioneiros da Criminalística
Coragem e muito conhecimento fizeram dele um dos peritos mais conceituados do Brasil, pois criou padrões de profissionalismo na criminalística da Polícia Federal, ao lado do já falecido Antônio Carlos Villanova, um dos maiores peritos da história do país. Hoje, aposentado, Maurício José da Cunha esbanja experiência e bom humor ao contar detalhes da história da perícia na capital federal.
O perito criminal federal tem formação em física pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Rio de Janeiro e curso em Documentos pelo Laboratório de Ciências Forenses, no País de Gales, Inglaterra. Desde de 1958 se dedica à polícia. Foi diretor do Instituto Nacional de Criminalística e diretor da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais. Há mais de 40 anos é professor da Academia Nacional de Polícia. Hoje, não há sequer um perito no país que não tenha passado pela sala de aula do Professor Maurício, como é chamado por todos.
Em que ano o senhor veio para Brasília?
Eu vim para Brasília no final de 1958, após aprovação em concurso público e realização de curso na Academia de Polícia do Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP). Fiz o curso da Escola de Polícia do Rio de Janeiro e aguardava ser chamado para tomar posse, quando o coronel Osmar Soares Dutra, encarregado pelo presidente Juscelino para formar a polícia em Brasília, me convidou para vir para cá. Ele queria formar uma polícia de elite, formada com pessoal selecionado.
Como foi o processo de implantação da polícia no Distrito Federal?
Na época, antes da mudança da capital, foram formados em Brasília o DRPB – Departamento Regional de Polícia de Brasília – e a GEB – Guarda Especial de Brasília (com formação militar). Ambos tinham âmbito de atuação local. Com a mudança da capital do Rio de Janeiro para Brasília, o DFSP – Departamento Federal de Segurança Pública – foi também transferido para Brasília, extiguindo-se o DRPB e a GEB. O DFSP assumiu a segurança da cidade e sem se ater a detalhes de datas e leis, o DFSP passou a Departamento de Polícia Federal (DPF) com atuação em todo território nacional. O Instituto de Criminalística (IC) passou a INC (Instituto Nacional de Criminalística (INC).
Anterior a sua carreira como perito no DF, em que atuava no RJ?
Eu trabalhava nos Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul. A empresa tinha um departamento de engenharia de levantamentos topográficos, denominado “serviços aerofotogramétricos”, que fazia levantamentos por meio de fotografias aéreas. Lá trabalhei por 10 anos. Paralelo a isso, fiz o concurso para a polícia por acaso. Não havia pretensão de ser policial. Ao dar carona a um amigo que ia se inscrever no concurso, acabei me inscrevendo para fazer a prova. Meu amigo foi reprovado e eu passei. Mas antes de tomar posse, vim para Brasília.
O senhor veio para trabalhar em que função?
Como eu tinha também curso de escrivão criminal, fui lotado na delegacia para tal sessão. Além disso, ajudei a formar a primeira e a segunda varas criminais na Justiça e depois retornei à Polícia.
Como foi a formação da primeira turma de peritos?
O primeiro grupo de peritos da capital foi composto por 10 pessoas, incluindo eu. Como precisávamos de policiais capacitados, nos foram enviados dois grupos que haviam passado por treinamento no Rio de Janeiro e São Paulo. Pessoas como João Dantas de Carvalho, José Carvalhedo Neto, José Aidano de Farias, Audésio de Arruda, Júlio César, entre outros. Com a mudança da capital do Rio e a transferência da DFSP para Brasília, em 1962, Dr. Antônio Carlos Villanova veio para capital, onde encontrou o grupo em atuação. Esse grupo, após concurso pela então DFSP, foi efetivado como os primeiros peritos criminais federais. A fotografia do grupo “pré-histórico” encontra-se no hall de entrada do auditório do INC.
E como foi o trabalho com Villanova?
O Antônio Carlos Vilanova, um dos maiores peritos da história do país, era diretor do IC, quando este era locado no Rio de Janeiro. Em 58, quando cheguei em Brasília, fazíamos as perícias num galpão de madeira na Candangolândia (antiga Velhacap). Os Ministérios, recentemente, haviam sido erguidos. Com a formação desse grupo de peritos, e a vinda do Villanova, nós fomos locados no quinto andar do Ministério da Justiça. Nós éramos alunos dele e de vários professores americanos – um deles foi o Morris Grodsky. Ao mesmo tempo em que assistíamos à aula, tínhamos que sair correndo para atender às solicitações periciais. Era uma coisa incrível, teoria e prática juntas. O Villanova era um perito famosíssimo no Rio de Janeiro e repetia sempre a seguinte frase: “Nós temos que consertar o motor do avião com ele voando”. Foram dois anos de curso, período integral.
Havia alguma divisão por especialidades?
Era “clínica geral”. Todo mundo fazia tudo. Fazíamos até desabamento. Na época, havia muito afogamento no Lago Paranoá. Eu só pegava abacaxi. Nós trabalhávamos muito. Cumpríamos expediente e ainda o plantão. Tinha muito trabalho e a maior parte era de perícias locais, por morte violenta, arrombamentos. Eu saía de manhã e só voltava à noite. Fazia também a parte de perícias internas e exames em armas.
Como começou a haver divisões nas perícias?
Foi natural, de acordo com as especialidades e aptidões de cada perito. Tinha locais, bombas e explosivos era geral, contábeis, documentos e etc. Começou a existir uma divisão pela profissão que cada um se especializou. O perito tem que ser especializado, mas deve ser clínico geral também.
Os peritos da primeira turma tinham alguma formação inicialmente?
De fato, a polícia de Brasília não começou com concurso. Ninguém queria vir trabalhar na poeira do Distrito Federal. Depois de um tempo, a maioria da turma saiu do País para estudar. Os destinos foram Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra. Muitos não tinham formação e fomos para fora e nos especializamos.
Quais ferramentas de trabalho vocês utilizavam?
Eram poucas. A percepção do perito era o determinante. Nós utilizávamos microscópio, raio x, vara com anzol, máquina fotográfica . O essencial era ter sabedoria para utilizar as ferramentas.
O senhor tem muitas histórias curiosas. Quais marcaram mais?
Antes do DFSP mudar para Brasília, a gente não tinha nem carro. Há várias histórias cômicas. Eu pegava táxi para fazer os locais. Às vezes, ia eu e o fotógrafo montados na vespa, outras de ônibus. Cheguei, até mesmo, a comprar o papel para fazer os laudos. Você acredita que, até quando aparecia um objeto não identificado, nós éramos chamados? Teve uma situação em que caiu um objeto em Planaltina. As pessoas diziam que era de um disco voador. No processo de perícia, vi que era um balão que veio da Europa.
E como foram os episódios com cartas-bomba?
Nós a desmontávamos com raio x, acredita? A gente saia com a bomba na mão para tirar o raio x, estudá-la e desmontá-la. Eram as pessoas fugindo, saindo correndo e nós entrando. Hoje, eles têm o canhão d’água. É só ligar o negócio, se afastar 200 metros e o negócio explode tudo. Na minha época, muita gente morreu com cartas-bomba. Teve colega nosso que ficou aleijado. Era um trabalho de muito risco. Em época de Natal, deixaram uma sacola, em frente ao Itamaraty. Um gari a pegou, achando que era um presente e por sorte a bomba não disparou. Ela emperrou. Eu fui lá e a desarmei. Nós utilizávamos uma vara com anzol para “pescar” cartas, bolsas, latas. Se caísse e não explodisse, é porque podíamos abrir. Houve um episódio na Embaixada dos Estados Unidos que pescamos a carta.
Em que período o senhor foi diretor do INC e como foi sua passagem pelo Instituto?
De 90 a 95. Minha passagem foi o maior problema. Não tinha nada. Era meia dúzia de gato pingado, que não trabalhava. Queriam acabar com o INC. O Octavio Brandão era praticamente sozinho. Eu trabalhava como diretor e também perito. Fazia os laudos e assinava como perito e como diretor. Eu passei aperto para não deixar a peteca cair.
Hoje o senhor ainda trabalha vinculado aos peritos?
Desde 1970, dei aula na academia para peritos, delegados, agentes, escrivães. Há 10 anos dou aula só para peritos. Não há um perito na DPF que não tenha sido meu aluno.