Em 2018, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu a literatura de cordel como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro. De acordo com o Instituto, apesar de ter começado no Norte e no Nordeste do Brasil, o cordel hoje é disseminado por todo o país. E, desde 2012, perícia criminal federal também é tema dos populares folhetos.
Grande entusiasta da arte, o perito criminal federal José Alysson Medeiros, além de exercer suas atribuições na área de engenharia, narra de forma divertida e lúdica situações do dia a dia dos profissionais da criminalística em forma de cordel.
Em sua mais recente publicação, intitulada de “O Perito Criminal e a Ilha do Cimento Perdido”, Medeiros transformou em literatura de cordel uma tese de Doutorado, que fala sobre a fábrica de cimento da Ilha de Tiriri, na Paraíba. A xilografia ficou por conta do experiente artista J. Borges.
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Entrevista
Alysson falou à revista Perícia Federal em 2018 sobre o trabalho de artista e também de perito criminal federal e revelou como surgem as inspirações para contar em forma de cordel. Confira a entrevista!
COMO SURGIU A IDEIA DE COMEÇAR A ESCREVER CORDÉIS COM ESSA TEMÁTICA?
A ideia surgiu em 2012, ao ler um folheto de cordel que ganhei da minha esposa, escrito por um médico conhecido. Nesse folheto, ele, que é neurologista, escrevia sobre os cuidados em relação à determinada doença e seus sintomas. Achei tão interessante o caráter informativo desse cordel que me imaginei escrevendo um sobre a perícia criminal. Faltava, então, a inspiração: criar uma estória, escrita em versos, para passar o recado. Certa noite, durante as férias, comecei a pensar em um local de crime onde o perito estivesse trabalhando e alguém chegasse de repente e começasse a atrapalhar e dar pitacos em seu trabalho. Levando em conta o caráter fantasioso da literatura de cordel, imaginei que esse personagem pudesse ser o próprio diabo atazanando o perito. E então, de um lance só, foram surgindo os versos do cordel ‘A Peleja do Diabo com o Perito Criminal’. Como eu não tinha, até então, qualquer experiência em escrever poesia, mostrei a um amigo da área de Letras para que verificasse as rimas e a métrica. Para minha surpresa, além dele ter gostado da estória, havia poucos ajustes a serem feitos nos versos.
Depois disso, mostrei a estória à minha esposa e a um amigo, também perito, que, além de gostarem, me estimularam a publicá-la. Então, escolhi três artistas e encomendei as xilogravuras que estampariam o folheto – essa parceria continua até hoje. Por fim, acabei contando com o apoio da APCF para divulgação em todo o Brasil, ora distribuindo-os gratuitamente por aí, ora disponibilizando seu conteúdo no site da Associação, uma vez que a entidade também reconheceu essa iniciativa como uma forma interessante de divulgação do trabalho da perícia criminal e dessa vertente cultural brasileira que é a literatura de cordel.
ANTES DE ESCREVER ‘A PELEJA DO DIABO COM O PERITO CRIMINAL’, VOCÊ JÁ HAVIA ESCRITO ALGUM OUTRO FOLHETO OU PUBLICAÇÃO?
Não. Até então, só tinha escrito em prosa e apenas publicado trabalhos acadêmicos relacionados à engenharia ou à perícia criminal.
O CORDEL É ESCRITO EM FORMATO DE SEXTILHA, QUASE COMO UMA CANÇÃO. O QUE É MAIS DESAFIADOR: REDIGIR UM LAUDO DE ENGENHARIA OU ORGANIZAR OS VERSOS DE SETE SÍLABAS EM ESTROFES COM RIMAS DESLOCADAS?
Boa pergunta! São desafios bem diferentes, mas eu diria que o mais desafiador tem sido redigir um laudo de engenharia. Explico: a Engenharia Legal é uma área da criminalística que costuma envolver, naturalmente, grandes desafios e peculiaridades a cada novo caso e, assim sendo, exige dos que nela atuam capacitação técnica e atualização constantes, a fim de bem atenderem às demandas que surgem. Além disso, sinto-me privilegiado por fazer parte de um excelente e coeso grupo de profissionais da Polícia Federal… E manter-se à altura deste time e da responsabilidade que nos foi confiada pela sociedade é sempre um grande desafio. Já em relação ao desafio de criar um folheto de cordel – pelejando com rimas, sentido e métrica – há algo que suaviza este duelo com as palavras. Não tenho maiores pretensões – muito menos a capacidade poética – de me tornar um expoente literário ou, simplesmente, um “perito em cordel”.
Para mim, tais experts são os fantásticos poetas populares que estão versejando Brasil afora, especialmente no Nordeste, e que respiram diariamente essa arte. Esta falta de maiores pretensões, a não ser a de divulgar o trabalho da perícia criminal e a literatura de cordel – desde sempre relevante na minha região e agora Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro – tem me ajudado a encarar este desafio com certa leveza. E, de quebra, ainda conto com a motivação dos colegas de trabalho. À medida que enfrentamos situações curiosas ou cômicas no dia-a-dia, sempre alguém sugere um ou outro mote para as próximas estórias. Várias vezes já fui surpreendido por um “Isso bem que daria um cordel!”
DE TODOS QUE VOCÊ JÁ ESCREVEU, TEM ALGUM PREFERIDO?
É engraçado como eu quero bem a cada um deles… Não diria que tenho um preferido, mas há um pelo qual nutro um carinho especial. É o cordel ‘O Perito que Acordou Criança’. Este cordel foi escrito a pedido de uma perita amiga para um evento destinado a crianças no hangar da Polícia Federal, em Brasília. Tal pedido foi logo após o nascimento do meu segundo filho e, naquele momento, havia inspiração de sobra, tanto é que foi o cordel que concluí mais rapidamente. Para completar, quando fiz a encomenda da xilogravura de capa ao artista J. Borges, ele me fez uma surpresa e, pela primeira vez, estampou a imagem em cores. Assim, tornou-se questão de honra publicá-lo em capa colorida, tendo sido, até então, o único do tipo. Acabei dedicando-o à minha família.
QUAL FOI O MAIS DIFÍCIL DE ESCREVER?
Digamos que o mais difícil foi o último, ‘O Encontro do Poeta do Absurdo com o Perito Criminal, pela ousadia da proposta. Não foi fácil construir um diálogo entre o perito e o personagem mítico de Zé Limeira, aproveitando as estrofes do livro de Orlando Tejo, extraídas de diversos capítulos. Foi um verdadeiro exercício de paciência: eu lembro de ter feito várias simulações até encontrar a estrofe que soava mais adequada a cada trecho do diálogo. Outro cordel que também deu um pouco mais de trabalho, e certa inquietação, foi ‘O Dia em que o Perito foi ao Tribunal’, pois, entre outras coisas, eu tinha que achar alguma forma de citar um artigo do Código de Processo Penal sem abusar do “juridiquês” ou deixar o texto enfadonho.
Já em outro trecho eu quis reforçar o uso abusivo da retórica e decidi escrever uma estrofe inteira em latim, tentando fazê-la minimamente compreensível, naquele contexto, para aqueles que fossem pesquisar o seu significado. Acho que o resultado ficou bom. Fiquei até surpreso no início deste ano em um evento de Engenharia Forense, na cidade de Fortaleza, pois, durante a fala de um juiz federal, ele respondeu a uma pergunta da plateia citando esse cordel. Foi gratificante vê-lo compartilhar da mesma ideia, destacando a linguagem poética utilizada.
COMO SURGEM OS ‘CAUSOS’ QUE VOCÊ NARRA NOS FOLHETOS?
Os “causos” sempre surgem de alguma inquietação vivenciada no trabalho ou que já foi relatada pelos colegas. Pode ser alguém que perturbou uma perícia de local de crime, pode ser um diálogo travado durante uma perícia de engenharia, pode ser uma novidade legal na área de genética forense, pode ser uma operação de combate a crimes contra o meio-ambiente. Enfim, basta que o fato me impressione e interesse que pode virar uma estória. E lá se vão oito “causos” e mais uma versão do primeiro cordel, em inglês, apresentado no formato poético conhecido como limerick.
CONTE UM CASO CURIOSO QUE VIROU CORDEL.
Em novembro de 2016, fui convocado, de última hora, para compor uma equipe da Superintendência da PF na Paraíba em uma operação de erradicação de cultivos ilícitos no sertão pernambucano. Durante a missão, aproveitei o dia de folga para escrever uns versos e, no último dia, decidi compartilhá-los apenas em um grupo de WhatsApp dos colegas mais próximos. Minutos depois, comecei a receber os versos de volta em vários grupos ou diretamente de colegas lotados em diferentes cidades. Depois disso tudo, só me restou publicá-los no cordel ‘O Dia em que o Perito conheceu a Caatinga’.