Por Perito criminal federal Marcus Vinicius de Oliveira Andrade, Dra. Karen Monique Nunes, Professor Dr. Marcelo Martins de Sena e Professora Dra. Mariana Ramos de Almeida

Em junho de 2012, a Polícia Federal, após denúncias de vendas de alimentos irregulares para o Exército e Aeronáutica, deflagrou a Operação Vaca Atolada na região metropolitana de Belo Horizonte. O objetivo era coibir a prática de adulteração de produtos alimentícios (carnes bovinas in natura) destinados a licitações de órgãos públicos. Na ocasião, foram cumpridos 10 mandados de busca e apreensão expedidos pela 9ª Vara da Justiça Federal em Belo Horizonte.

As empresas eram acusadas de utilizar máquinas injetoras de grande porte para introduzir compostos que provocam o aumento da capacidade de retenção de água em peças de carne (sais e polissacarídeos) para alterar seu peso e, com isso, praticar fraude econômica. Segundo algumas estimativas, o procedimento levava a um ganho fraudulento na peça de carne de 20% a 30% no seu peso final. No ano seguinte, como resultado da operação, dez empresários foram indiciados por crime de adulteração de produtos alimentícios, formação de quadrilha e crimes de licitação, cuja pena pode chegar a oito anos de detenção. 

Em 2017, a Operação Fugu foi deflagrada em Santa Catarina. Neste caso, empresas suspeitas de adulterar pescados importados adicionavam soluções de sais de sódio para aumentar, de forma irregular o peso dos produtos. No mesmo ano, a operação Carne Fraca tomou grande repercussão em todo o país. As investigações envolviam a busca por irregularidades como o aproveitamento de carcaças animais para produção de gêneros alimentícios, utilização de aditivos não permitidos pela legislação, pagamento de propinas a fiscais federais agropecuários e agentes de inspeção em razão da comercialização de certificados sanitários, dentre outros.

A Operação Carne Fraca atingiu diretamente duas das maiores companhias de processamento de alimentos do mundo, as brasileiras BRF e JBS, gerando grande impacto na indústria alimentícia brasileira e na confiança internacional dos mercados em relação à qualidade da carne nacional. 

Ainda na primeira fase da operação, devido a falhas na divulgação de informações por parte dos responsáveis pelas investigações, a APCF chegou a emitir nota oficial ressaltando a importância dos trabalhos periciais executados com a devida autonomia técnica, científica e funcional:

(…) “por sua repercussão e polêmica, a “operação Carne Fraca” tornou-se uma clara demonstração de como o conhecimento técnico e o saber científico, em todas as etapas da investigação, não podem ser deixados de lado em favorecimento dos aspectos subjetivos da investigação criminal. A atuação adequada dos Peritos Criminais Federais nas demais etapas do procedimento investigatório, e não apenas no seu início e na sua deflagração, teria propiciado a correta interpretação dos dados técnicos em apuração, assim como a definição dos procedimentos técnico-científicos necessários para a materialização de crimes de fraude alimentar eventualmente cometidos pelas indústrias sob suspeição.”

Os casos relatados são apenas alguns exemplos de investigações de esquemas de corrupção envolvendo adulteração de alimentos ocorridas no Brasil nos últimos anos. Fraudes como essas não só provocam danos diretos à saúde pública, como foi o caso da Operação Vaca Atolada, como podem gerar enormes danos financeiros à economia brasileira, como observado após a deflagração da Operação Carne Fraca em 2017. 

A casuística deste tipo de fraude, aliada à importância e abrangência do tema na economia e saúde pública, principalmente, justifica por si só iniciativas e investimentos no sentido de robustecer a infraestrutura própria dos laboratórios da Polícia Federal, aprimorar metodologias analíticas, capacitar tecnicamente o corpo de peritos criminais federais, além de estabelecer parcerias estratégicas em pesquisa e desenvolvimento nesta área.

Quanto à infraestrutura de laboratórios próprios da Polícia Federal, o atual corpo de gestores da Diretoria Técnico-Científica da Polícia Federal possui projetos específicos na área. Como uma de suas prioridades, a DITEC procura dotar a criminalística de capacidade própria para executar grande parte dos exames periciais demandados em alimentos objetos de fraudes sem depender de outros laboratórios ou instituições públicas.

Quanto às outras iniciativas, projetos de Fomento à pesquisa como o Programa Pró-Forenses, lançado em 2014 pela CAPES em parceria com a ABCF (Academia Brasileira de Ciências Forenses), têm desempenhado um papel fundamental para o avanço técnico da criminalística na área, além de contribuir no estabelecimento de parcerias estratégicas entre órgãos de perícia oficial e instituições de pesquisa. 

Neste sentido, ainda em 2014, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em colaboração com a Polícia Federal em Minas Gerais, Institutos de Criminalística de Minas Gerais e Distrito Federal, Universidade Federal de Viçosa e Universidade Estadual de Londrina, desenvolveram um projeto no contexto do edital CAPES-Pró-Forenses que, dentre outros objetivos, estabelecia a meta de desenvolver metodologias de triagem de análise de carnes adulteradas, agregando rapidez e eficiência às análises iniciais das amostras. 

É importante destacar que as análises tradicionais deste tipo de amostra são geralmente bastante complexas e demoradas. O estudo de adulterantes exógenos e pouco comuns em alimentos, especialmente carnes, não é contemplado na rotina exigida pela legislação da área e tampouco executado pelos laboratórios especializados dos órgãos fiscalizadores. É comum que peritos criminais envolvidos neste tipo de caso sejam compelidos a desenvolver novas metodologias de análise com a utilização de equipamentos muitas vezes pouco disponíveis nos laboratórios forenses, o que aumenta consideravelmente o tempo e complexidade para se chegar a uma resposta pericial satisfatória. Isto aumenta a importância do desenvolvimento de métodos mais simples de triagem e da consolidação das parcerias dos laboratórios forenses com instituições de pesquisa.

JUSTIFICATIVA

O controle de qualidade da carne consumida no Brasil é realizado pelo Ministério da Agricultura por meio de laboratórios de inspeção sanitária. O Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (RIISPOA) é o principal documento regulamentador adotado pelos órgãos fiscalizadores, tendo sido publicado em 1952 e revisado em 2017. A verificação da qualidade de carnes e produtos cárneos é realizada por meio de análises dos parâmetros microbiológicos e físico-químicos, conforme artigo 274 do código:

Art. 274. Os produtos de origem animal devem atender aos parâmetros e aos limites microbiológicos, físico-químicos, de resíduos de produtos de uso veterinário, contaminantes e outros estabelecidos neste Decreto, no RTIQ (Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade) e ou em normas complementares (MAPA, 2017, grifo nosso).

Entretanto, para carne fresca “in natura”, definida como a carne que foi minimamente processada após abate, como corte para varejo, moagem ou congelamento, não é permitida a utilização de aditivos de nenhuma natureza, conforme Portaria n° 1004/1998 da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde. Assim, a adição de quaisquer aditivos é caracterizada como fraude ou adulteração.

Segundo o Código Penal Brasileiro, a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de substância ou produtos alimentícios é crime punível com pena de reclusão e multa:

Art. 272 – Corromper, adulterar, falsificar ou alterar substância ou produto alimentício destinado a consumo, tornando-o nociva à saúde ou reduzindo-lhe o valor nutritivo:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (BRASIL, Código Penal, 1940)

Fraudes por adulteração são caracterizadas pela adição intencional de produtos de qualidade inferior, subtração ou substituição de constituintes dos alimentos, adição de substâncias não permitidas pela legislação ou, quando permitidas, em quantidades superiores ao estabelecido, visando o aumento de lucros.

As técnicas de controle de qualidade da carne bovina consumida no Brasil baseiam-se em métodos analíticos clássicos para a determinação de propriedades físico-químicas e microbiológicas da carne, como teor de fósforo, nitratos, nitritos, nitrogênio, pH, resíduo mineral fixo, entre outros. Alternativamente (e ainda pouco comuns), técnicas instrumentais diversas, como espectroscopia e cromatografia, têm sido propostas para a identificação de componentes presentes na carne, sua quantificação e controle de qualidade.

As técnicas cromatográficas possuem alta sensibilidade, entretanto, apresentam como características um longo tempo de análise e utilização de grandes quantidades de insumos. Alternativamente, técnicas espectroscópicas vibracionais apresentam inúmeras vantagens, tais como mínimo (ou nenhum) tratamento da amostra, análises mais limpas, sem gasto de reagentes ou geração de resíduos, maior rapidez e menor custo.

Nos últimos anos, verifica-se lenta mudança nos sistemas de controle de qualidade de alimentos visando a detecção de fraudes alimentares, as quais têm mostrado uma complexidade crescente em seu modus operandi. Há uma tendência de utilização de métodos de análise não alvo (non-targeted analysis) – análise de regiões de impressão digital (fingerprint) – em detrimento aos métodos de análise alvo (targeted analysis) – contém ou não contém o adulterante. Isso está relacionado ao constante crescimento no uso de técnicas espectroscópicas. Aliados ao uso de ferramentas quimiométricas, métodos baseados em espectroscopia molecular são promissores no desenvolvimento de modelos de identificação de padrões ou de classificação supervisionada. Entretanto, a utilização de métodos non-targeted apresenta novos desafios para as comunidades de pesquisa em química analítica e ciência de alimentos, como a falta de diretrizes para o desenvolvimento e validação desse tipo de método e dificuldades na obtenção de amostras autênticas com certificação de origem para a construção dos modelos quimiométricos.

O PROJETO 

O projeto da tese de doutorado envolveu a simulação em laboratório do mesmo tipo de fraude observado na operação policial realizada em Minas Gerais, ou seja, a adição de produtos não cárneos à peça de carne. Nas amostras apreendidas, os principais adulterantes encontrados continham sais, como cloretos, fosfatos, tripolifosfato de sódio, sal refinado iodado, pirofosfato ácido de sódio, além de maltodextrina – um carboidrato complexo proveniente de amido, colágeno – uma proteína estrutural, naturalmente presente na carne, e carragena, um polissacarídeo fosfatado obtido de algas vermelhas comestíveis. Como já mencionado, a adulteração por adição de soluções salinas e demais produtos gelatinizantes visa ao aumento da capacidade de retenção de água pela peça de carne, propiciando uma fraude econômica por ganho no peso – fraude conhecida como adulteração com motivação econômica (EMA – Economically-motivated adulteration).

As amostras do estudo foram adulteradas de forma controlada em laboratório, permitindo a identificação global de adulteração ou detecção de adulterações individuais com soluções de cloreto de sódio, tripolifosfato de sódio e carragena. As metodologias de análise envolveram técnicas comumente usadas na criminalística, como espectroscopia de absorção na região do infravermelho médio (FTIR) e espectroscopia Raman. Associadas a métodos quimiométricos para a construção de modelos multivariados, essas técnicas foram aplicadas no sentido de desenvolver métodos de análise de triagem (screening) para identificação e caracterização das fraudes em carnes bovinas in natura como alternativa aos métodos físico-químicos de análise de autenticidade de carne. Amostras consideradas adulteradas por um método screening são submetidas a análises complementares para a confirmação ou não da adulteração, diminuindo, assim, os custos de análise e aumentando a rapidez na detecção da fraude. 

As frações de cada peça foram adulteradas pela adição de soluções aquosas a 5% m/v dos seguintes adulterantes, tendo em vista o potencial aumento da capacidade de retenção de água e, consequentemente, aumento da maciez: cloreto de sódio (NaCl), tripolifosfato de sódio (TPFS), carragena (Carrag), NaCl:TPFS (1:1), NaCl:Carrag (1:1), TPFS:Carrag (1:1), NaCl:TPFS:Carrag (1:1:1).

As frações de carne controle e adulteradas, além do líquido exsudato (purgas), foram submetidas a análise por espectroscopia de absorção no infravermelho médio (FTIR) e espectroscopia Raman. Os dados de FTIR e espectroscopia Raman foram tratados usando métodos quimiométricos de classificação supervisionada (análise discriminante por mínimos quadrados parciais, PLS-DA).

TÉCNICA PROMISSORA

Levando-se em consideração a relação custo x benefício, o uso da espectroscopia de absorção no infravermelho médio (FTIR) mostrou-se uma técnica robusta, simples, rápida e de baixo custo, uma vez que a maioria dos laboratórios forenses da polícia federal já possuem o equipamento em uso. O modelo PLS-DA binário construído para detecção de fraudes por injeção de cloreto de sódio, tripolifosfato de sódio e carragena em carne bovina in natura forneceu os melhores resultados para esta aplicação, apesar de gerar dados não específicos, isto é, diferenciar com eficiência apenas amostras não adulteradas daquelas adulteradas, não importando qual seja o adulterante utilizado.

Figura 1: Modelo PLS-DA para previsão de amostras adulteradas versus amostras não adulteradas.

O modelo de previsão das amostras adulteradas é apresentado na Figura 1. É fácil perceber a facilidade do modelo em separar amostras não adulteradas daquelas adulteradas. Contudo, modelos para adulterantes específicos não foram capazes de fazer distinção clara entre os tipos de adulterantes empregados. A linha tracejada vermelha horizontal indica o limite de classificação, enquanto a linha tracejada escura vertical divide a amostras de treinamento e de teste do modelo. No conjunto teste apenas um Falso Positivo (amostra não adulterada prevista como adulterada) foi observado. Os resultados para este modelo forneceram excelentes taxas de confiabilidade, 94% e 95% para os conjuntos de treinamento e teste, respectivamente. Valores de taxas de confiabilidade similares foram obtidas para o mesmo modelo construído a partir de espectros Raman das amostras de purga das peças adulteradas frente às amostras de purga de carnes não adulteradas.

Figura 2: Espectros Raman para as 165 amostras utilizadas para a construção do modelo de classificação binário PLS-DA.

De um modo geral, a análise das amostras de purga foi satisfatória para a identificação de fraude por injeção de produtos não cárneos à carne bovina in natura. Apesar dos modelos obtidos por ATR-FTIR e FT-Raman para a análise das purgas apresentarem valores próximos de confiabilidade para os modelos globais de detecção de fraude, a análise por ATR-FTIR apresentou a vantagem de ser cerca de 5 vezes mais rápida que a análise por FT-Raman. Isto se torna uma grande vantagem quando se imagina a aplicação prática da técnica em análises periciais.

Os modelos de classificação construídos visaram à análise forense por discriminação preliminar, como um método inicial para classificação das amostras em adulteradas e não adulteradas. Assim, avaliando-se sob o ponto de vista analítico, o método de triagem desenvolvido mostrou excelente potencial na classificação de amostras especialmente ao minimizar falsos negativos e, em menor escala, falsos positivos. Além de apresentar facilidade operacional em sua execução.

Apesar dos resultados obtidos e do potencial de aplicação demonstrado, a metodologia ainda carece de otimizações e estudos complementares de forma a avaliar a influência no método de variações biológicas intrínsecas à complexidade típica da matriz carne bovina contribuindo com a reprodutibilidade do método. Em seguida, deverão ser desenvolvidas rotinas analíticas específicas, além de capacitação básica do corpo pericial, para que o método seja efetivamente colocado em prática na rotina pericial de análises em amostras de carne adulteradas. Isso já foi previsto como passo seguinte a ser estabelecido pelo grupo de pesquisa juntamente com as unidades de polícia federal envolvidas nesta parceria. 

Referência bibliográfica: NUNES, K. M. (2019) Aplicação de Técnicas Espectroscópicas Vibracionais e Imagens Hiperespectrais na Detecção de Fraudes em Carnes Bovinas In Natura (Tese de Doutorado). Instituto de Ciências Exatas, Departamento de Química, UFMG, Belo Horizonte.