Por perito criminal Victor Satiro de Medeiros

Não muito diferente do restante do país, o estado do Rio de Janeiro vem atravessando um cenário de aumento de tragédias de grandes proporções, sejam elas ligadas a acontecimentos naturais, como os eventos decorridos de variações climáticas intensas, sejam aquelas advindas da ineficiência do poder público. A causa desses episódios sempre levanta a discussão envolvendo a falta de preparo dos entes públicos na fiscalização e regulação dos serviços que regem as cidades.

No dia 8 de fevereiro de 2019, em torno das 5h da manhã, o alojamento do Centro de Treinamento George Helal, mais conhecido como Ninho do Urubu, foi destruído por um incêndio de grandes proporções ocorrido no local. Ao todo, 26 jovens atletas dormiam no alojamento quando as chamas iniciaram espalhando-se rapidamente até tomar toda a instalação, 30 minutos depois. 

A equipe de perícia, formada por peritos do Serviço de Perícias em Engenharia do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (SPE-ICCE), foi solicitada às 07h30min, chegando ao local às 8h15min, portanto cerca de 3h após o início do evento, procurando em um primeiro momento, com comunicação direta com o comandante do Corpo de Bombeiros responsável pela ação de combate às chamas, garantir o início dos exames com segurança. Nesse momento, foi possível iniciar a caracterização das instalações.

O conjunto de módulos formava seis quartos dispostos em paralelo, pelo maior eixo longitudinal, no setor posterior, com o setor frontal ocupado por um hall de acesso aos quartos. O setor lateral direito era composto por um vestiário, contendo quatro boxes com assentos sanitários e quatro unidades de pias. Os quartos contavam com elementos de janelas (cerca de 1,0m²) providos de grades de proteção, voltadas para o setor posterior em posição adjacente aos aparelhos de refrigeração de ar. A cobertura do alojamento era realizada por estrutura metálica treliçada e telhas de aço galvanizado.

Os módulos se encontravam apoiados sobre um conjunto de sapatas consolidadas sobre o solo, com acabamento do piso confeccionado em elementos de chapa de madeira, contando ainda com sistema hidráulico, elétrico e de climatização, este último exercido por 06 (seis) unidades de aparelho refrigerador de ar horizontal, tipo janela, fixados em nichos metálicos.

Após a liberação do local para o trabalho pericial, foi constatado que dez cadáveres, todos apresentando vestígios de carbonização intensa e generalizada, alguns com desenvolvimento de processos de fragmentação óssea, permaneciam no local, com configuração explicitada na Figura 01. 

Figura 01: Visão da planta e localização das vítimas encontradas no local

O desafio inicial atentou-se para a tomada de fotografias e anotações, visando caracterizar o real posicionamento das vítimas, que receberam numerações ainda na cena do evento, às quais seguiram com os corpos até o Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto (IMLAP), para posterior identificação dos atletas. Com isso, poderíamos colocar cada vítima identificada na cena, confrontando com possíveis informações sobre lista de ocupações de quartos, auxiliando na montagem da dinâmica do evento.

Após a liberação dos cadáveres, os exames se intensificaram na busca de evidências, tanto no interior quanto na área externa do alojamento, onde os Bombeiros acondicionaram mobílias, painéis de compartimentação interna/externa e itens diversos. Todas as evidências foram checadas, fotografadas, numeradas e posicionadas no croqui. Em uma linha imaginária, localizada no setor externo anterior das instalações, foi identificada a existência de cinco (a sexta permanecia no nicho original no quarto 02) aparelhos refrigeradores de ar, todos removidos da parede anterior dos quartos. Uma vistoria in loco identificou que dois deles apresentavam vestígios de queima interna em grande monta, sendo arrecadadas as unidades de motor de ambos para análise em bancada na sede do Serviço de Perícias em Engenharia (SPE). Um drone foi utilizado para tomada fotográfica aérea, auxiliando na identificação e posicionamento dos vestígios de interesse e na obtenção de informações sobre gradação de danos na estrutura da cobertura.

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Figura 02: Visão aérea com detalhes da planta baixa em sobreposição
Figura 03: Visão de parte da equipe trabalhando no local e grande quantidade de mobílias previamente removidas do interior do alojamento

A análise mais detalhada no interior do alojamento e do conjunto de itens previamente removidos revelou uma quantidade significativa de traços de fusão secundários (formação de pérolas de fusão caracterizados por possuir resíduos de carbonetos e superfícies ásperas), em diversas fiações elétricas, bem como nas distribuições que alimentavam as linhas de condicionadores de ar, evidenciando que as instalações de alimentação de energia elétrica se encontravam energizadas, mesmo durante o desenvolvimento do incêndio. 

Durante o exame in loco, a equipe de engenheiros verificou que as seções nominais dos condutores elétricos eram compatíveis com aqueles constantes na planta unifilar. E que embora os disjuntores da caixa de distribuição estivessem totalmente consumidos, ficou evidente que eles sofreram uma queima em decorrência da ação direta das chamas e não por uma sobrecarga. 

Os núcleos das chapas metálicas dos módulos habitáveis, que exerciam função de amenização térmica e acústica, denotavam, em sua maioria, ser de espuma de poliuretano injetado que, pelas propriedades físicas e químicas, apresentam baixo ponto de fulgor (em torno de 55°C) e alta inflamabilidade (>50°C), o que permitiu um desenvolvimento rápido do incêndio (rapid fire progress) até atingir o fenômeno denominado flashover. A teoria do flashover diz que, durante o desenvolvimento do incêndio, o calor da combustão aquecerá gradualmente todos os materiais combustíveis presentes no ambiente, fazendo com que eles alcancem a queima instantânea e concomitante ignição súbita generalizada.

Figura 04: Visão do material de preenchimento dos painéis ainda parcialmente preservado

Durante os exames em bancada nos dois motores dos aparelhos refrigeradores de ar, os quais apresentavam vestígios de queima interna, ficou evidenciado naquele arrecado nas imediações do quarto seis que o eixo encontrava-se travado. Após a sua abertura, foi constatada a existência de um traço de fusão primário no interior do enrolamento principal, similar àquele apresentado como curto de conexão em publicação no site oficial do fabricante. 

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Figura 05: Visão do traço encontrado no interior das expiras da bobina do motor

Importante enfatizar que um travamento de eixo de motor, por qualquer que seja a causa, dentre as mais prováveis por contaminação interna, comprovadamente teremos um superaquecimento do motor e, consequentemente, falha no material isolante do enrolamento, gerando um fenômeno termoelétrico no interior do aparelho. Insta salientar que tal fenômeno se desenvolverá sem que ocorra a atuação do dispositivo de proteção (disjuntor) quando da eclosão do fogo. 

Demais considerações relacionadas à normatização da estrutura e dinâmica foram incluídas no laudo pericial. Vale ressaltar que a repercussão do caso e a grande exposição nos veículos de imprensa produziram uma grande quantidade de informações divergentes, algumas atribuídas equivocamente à perícia. A equipe de trabalho, composta por peritos oficiais do SPE-ICCE, formada por engenheiros mecânicos, eletricistas, civis e de materiais, foi primordial para o refinamento dos exames periciais e a síntese de informações, transformando a confecção final do laudo pericial numa verdadeira sabatina técnica e textual. 

*Com a colaboração dos peritos criminais Liu Tsun Yaei, Amaro Moreira Coelho Júnior, César Souza Guimarães, Renato Godoy Bichara e Carlos Eduardo Martins Mesquita, do Serviço de Perícias em Engenharia do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (SPE-ICCE)