Por perito criminal federal Antonio Augusto Canelas Neto

O estudo de perfis de manchas de sangue, também conhecido como Bloodstain Pattern Analysis-BPA, há muito tempo vem sendo utilizado na resolução e na reconstrução de crimes. Trata-se de uma técnica com mais de cem anos de história, e que se iniciou de maneira mais científica em 1895 por meio do médico Edward Piotrowsky, da Polônia. Piotrowski tinha como método experimental martelar coelhos ainda vivos na cabeça para, em seguida, documentar o comportamento das manchas de sangue geradas com esta ação.

Figura 1- Desenhos de Piotrowski para documentar seus experimentos em meados do século XIX (Fonte: [6]).
Em uma época mais contemporânea, o estudo de manchas de sangue se encontra extremamente avançado em termos de tecnologia, pesquisa acadêmica e formação de peritos, quando comparado o passado remoto. Países com reconhecida tradição forense tais como Estados Unidos, Canadá, Holanda, França, Alemanha, Inglaterra, Nova Zelândia e Austrália têm-se destacado neste desenvolvimento ano após ano.

Treinamentos nesta área possuem profissionalização e padronização internacional tanto pela Associação Internacional de Analistas de Manchas de Sangue (International Association of Bloodstain Pattern Analysts- IABPA), criada em 1983, quanto como pelo Scientific Working Group on Bloodstain Pattern Analysis (SWGSTAIN), do FBI, criado em 2002. Este nível de profissionalização e padronização minimiza erros conceituais, nomenclaturas diversas e entendimentos equivocados no uso desta técnica. Assim, para um profissional ser reconhecido pelo sistema judiciário de muitos países, este deve possuir níveis avançados de conhecimento instituídos por estas organizações.

O estudo de manchas de sangue de uma ocorrência criminosa também pode ser feito de maneira indireta, ou seja, por meio do encaminhamento de imagens de outro perito criminal que processou o local. Esta possibilidade aumenta muito a capacidade e a flexibilidade do uso desta técnica, viabilizando-a ainda mais do ponto de vista logístico e econômico, já que além da tempestividade no atendimento, ter um especialista disponível em todos os Institutos é pouco comum.

No Brasil, um país com baixíssimo índice de resolução de casos, e índice de homicídios comparados inclusive a de uma guerra civil, apresentamos até o momento pouco conhecimento e desenvolvimento no tema. Verifica-se em nosso País, na verdade, um grande apelo por métodos sensacionalistas e televisivos, em detrimento a uma política estratégica no trato dos vestígios e dos micro vestígios, que são as verdadeiras provas científicas. Inexiste, obviamente, neste contexto, consciência da aplicação correta do estudo de manchas de sangue, além de sistematização do conhecimento, da divulgação e da padronização nesta área.

Tipos de manchas e perfis de manchas de sangue

O uso da interpretação de perfis de manchas de sangue é baseado em princípios científicos relacionados principalmente ao conhecimento da mecânica dos fluidos, da biologia, da física, da química e da matemática. Pelo formato, tamanho e distribuição das manchas de sangue depositadas em uma superfície, podemos inferir o mecanismo que foi necessário para sua geração que, em conexão com outros elementos da cena de crime, podem levar ao estabelecimento do que realmente ocorreu no local, como ocorreu, quando ocorreu e até quem esteve presente durante esta ocorrência.

Para facilitar a abordagem nesta análise, as manchas de sangue são divididas em uma taxonomia própria aprimorada ao longo de décadas. Todavia, embora teoricamente organizadas, a realidade se mostra muito mais complexa quando estas manchas de sangue agem e se sobrepõem concomitantemente de diversas maneiras e de diversas formas em situações reais. Daí a necessidade de um expert no assunto, como já alertava Hans Graus ainda em 1908 [3]. Quando não trabalhada por verdadeiros especialistas, o estudo de manchas de sangue pode ocasionar alguns “desastres” jurídicos.

O caso do americano David Camm [5] é um exemplo clássico do que pode acontecer com uma opinião não especializada. David ficou preso por 11 anos acusado de executar a tiros toda sua família, mulher e crianças (um menino e uma menina). Tudo começou após declaração de um “expert” de que as manchas de sangue contidas em sua roupa, e com perfil genético de sua filha morta no crime, eram provenientes de impacto por arma de fogo (spatters). Inferiu-se, com esta premissa, que David estaria na cena de crime no momento dos assassinatos, algo que ele sempre negou. Uma análise posterior por verdadeiros analistas, no entanto, verificou que as manchas na roupa de David eram na verdade manchas transferidas e não spatters. David, ao tentar retirar seu filho morto dentro do veículo, acabou por encostar sua camisa em manchas spatters contidas no cabelo de sua filha que estava morta ao lado do menino. Neste processo, estas manchas spatters acabaram sendo transferidas para a camisa de David em um processo de contato.

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Figura 2 – Imagem de uma cena de crime que talvez seja entendida apenas como sangue frente à análise de um leigo. Para um analista, porém, a imagem apresenta diversas informações relacionadas à forma de óbito da vítima, ao tipo de lesão que esta sofreu e até a sua posição antes e após o ataque (Fonte: [1]).
Resolução de casos utilizando a análise de perfis de manchas de sangue

Apresentamos agora alguns breves exemplos de casos examinados pelo autor.

A imagem da Figura 3 é parte de um total de 35 fotografias de um caso de homicídio por facadas. Em crimes assim, usualmente se observa luta e movimentação intensa no ambiente, além de uma razoável quantidade de sangue devido às inúmeras lesões presentes. Ao verificar o caso, porém, o analista separou esta foto dentre tantas outras por um motivo muito pitoresco e não compreendido pelos peritos de local. O perfil mostrado é proveniente de um mecanismo de geração de impacto e que, na visão do analista, não era condizente com o crime apresentado.  Ao questionar este elemento à equipe de local de crime, o analista soube que a vítima, antes de morrer, havia agredido seu algoz com um pedaço de pau maciço, levando-o a se internar em um hospital. Assim, o perfil impactado da figura era na verdade do sangue (entenda-se material genético) do criminoso que foi atingido pela vítima. A simples coleta de sangue deste perfil impactado, portanto, colocaria o suspeito na cena de crime. Note-se que a coleta desta amostra tinha sido totalmente negligenciada pela equipe de processamento.

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Figura 3- Perfil impactado reconhecido entre diversas outras imagens contendo sangue. Em pouco tempo o analista estabeleceu seletividade para coleta de amostras para exame de perfil genético (Fonte: DH-CPCRC).

Em outro caso no interior de um estado do Brasil, o analista foi capaz de instituir a verdadeira dinâmica pela simples análise de manchas de sangue contidas na mão da vítima. Trata-se do efeito denominado backspatter, onde gotas de sangue seguem uma trajetória no sentido contrário a entrada do projétil, atingindo assim armas e mãos do criminoso. Neste caso, porém, tais manchas atingiram a mão da própria vítima que, pela posição, soube-se estar em posição de defesa e não de ataque, como alegava a outra parte. Isso foi detectado em uma análise quase que imediata e ainda frente a diversas outras hipóteses levantadas. Por questões de confidencialidade, deixamos de mostrar a imagem do caso, mas a Figura 4 apresenta outro emprego da análise do efeito backspatter em casos de suicídio, afim de que entendamos o conceito desta interpretação.

Figura 4- Efeito backspatter na mão de um suicida e reconstrução da posição por meio da interpretação destas manchas de sangue. Percebe-se, também, alteração por sombra no dedo da vítima, ocorrido por conta do guarda mato da arma (fonte: [5]).
Em outro caso, o analista verificou que a morte de um cidadão no meio da rua em um dos subúrbios da cidade só poderia ter sido ocasionada se ele tivesse sido lançado com determinada energia e não simplesmente por uma queda natural, como inicialmente se imaginava na reprodução simulada. A energia cinética das manchas de sangue foi considerada incompatível para a versão sugerida. A possibilidade da vítima ter sido lançada de um veículo foi uma das hipóteses sugeridas pelo analista, e a busca de sangue oculto em veículos de desafetos da vítima era uma possibilidade que sequer havia sido considerada até então.

No centro-oeste do País, uma moça foi agredida por um colega de trabalho em um final de semana. Não houve exame de local, já que a perícia mais próxima ficava a quilômetros de distância. Para piorar, no primeiro dia útil, o local foi alterado pela equipe de limpeza, restando apenas fotografias de um celular. Durante seu depoimento, a mulher mostrou movimentos e ações ao analista que, com isso, foi capaz de verificar que as manchas de sangue contidas em sua roupa e no piso eram compatíveis com estes seus movimentos sequenciais, auxiliando no esclarecimento dos fatos por meio de uma abordagem totalmente científica e, ao mesmo tempo, evitando a contaminação contextual trazida por relatos, opiniões e versões diversas.

Estes breves exemplos mostrados de maneira resumida nos indicam que, além de solucionar casos de maneira tempestiva, o estudo de manchas de sangue nos leva na busca de outros elementos sequer considerados em uma abordagem convencional. Poderíamos aqui discorrer sobre o uso em casos mais complexos, mas por limitação de espaço deixaremos para outra oportunidade. Ressalte-se, porém, que em casos complexos a eficácia desta técnica se torna um considerável diferencial.

Considerações finais

Existem pelo menos duas conferências mundiais exclusivas sobre o estudo de manchas de sangue a cada ano e usualmente ocorrem na América do Norte, na Europa e na Oceania. Estudos acadêmicos para obtenção de mestrado e doutorado em análise de perfis de manchas de sangue também já são uma realidade comum em alguns países destes continentes. É válido sempre lembrar que a maioria possui índices de violência e taxas de homicídios bem inferiores a do Brasil.

Não é exagero dizer que o País está pelo menos 50 anos atrasado no estudo de interpretação de manchas de sangue quando comparado com institutos mais desenvolvidos, embora existam ações embrionárias ocorrendo nos últimos anos. A Polícia Federal, por exemplo, começou a se tornar mais empenhada em mudar este panorama desde 2013, quando, com apoio da Área de Perícia Externas (APEX) do Instituto Nacional de Criminalística (INC), instituiu a disciplina “Perfis de Manchas de Sangue” na Academia Nacional de Polícia para formação dos novos peritos criminais. Este ano de 2017, peritos mais veteranos retornaram para a Academia de Polícia em Brasília/DF para também obter treinamentos no tema. O poder de multiplicação destas ações é enorme dentro da instituição, sendo que casos antes sequer vislumbrados sob o enfoque da interpretação de manchas de sangue começam a surgir sob outra ótica.

Nas perícias estaduais, por outro lado, o interesse pelo tema é mais conhecido e antigo, embora estas instituições careçam de especialistas em nível avançado. Com um interesse mútuo no desenvolvimento do tema, o autor tem tratado pessoalmente com as associações estaduais destes órgãos, seja por meio de consulta em estudos de casos trazidos para análise, seja por meio de parcerias em eventos. A implementação de cursos profissionalizantes nesta área, e com os mesmos padrões internacionais exigidos pela SWGSTAIN, é uma realidade não muito distante.

O recente lançamento do livro “Perfis de Manchas de Sangue- Do local de crime à elaboração do Laudo” é outro passo determinante para esta mudança. Trata-se da primeira obra na língua portuguesa sobre o tema e com os padrões mundiais no assunto. A APCF, além das associações estaduais de peritos criminais do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Pará apoiaram fortemente a obra, oferecendo suporte incondicional à divulgação e à disseminação do livro desde seu lançamento no XXIV Congresso de Criminalística em Florianópolis/SC. Podemos dizer que o Brasil hoje, de maneira inédita na América Latina, possui bibliografia com qualidade, preceitos e padrões internacionais da área.

Conclusão

Sabe-se, há muito tempo, que o desconhecimento do trato de evidências pode pregar peças desagradáveis para quem não está preparado para provar cientificamente o que escreve ou o que diz. E isso serve de alerta para aqueles que partem de premissas baseadas em contextos ou opiniões, mas que não as conseguem provar cientificamente de maneira plena, ou sem um teste de multi-hipóteses contestador. A verdadeira justiça pela ciência sempre estará acima da opinião pública predominante, acima do apelo de efeitos visuais e tecnológicos e acima da pressão da mídia impressa e/ou televisiva. O estudo de manchas de sangue certamente se insere neste contexto à medida que é uma técnica baseada exclusivamente no comportamento científico do fluido de sangue para provar suas hipóteses, sejam estas acusatórias ou não.

Pela rapidez, eficácia e baixo custo na resolução de crimes, institutos forenses mais visionários já perceberam que um bom analista de manchas de sangue também é capaz de auxiliar um caso com maior rapidez e robustez de provas do que métodos tradicionais de investigação sem esta expertise, gerando uma satisfatória economia de recursos e tempo. Por isso, o desenvolvimento desta área tem crescido tanto. Na verdade, apenas os que desconhecem mais profundamente o assunto ainda possuem dúvidas sobre sua eficácia.

Referências bibliográficas

  • Antonio A. Canelas Neto, “Perfis de Manchas de Sangue – Do local de crime à elaboração do laudo”, 1ª.edição, Editorial Lura, 2017.
  • Stuart H. James, Paul E. Kish, T. Paulette Sutton, “Principles of Bloodstain Pattern Analysis- Theory and Practice”, 1th edition, CRC Press, 2005;
  • Herbert Leon Macdonell, “The Literature of Bloodstain Pattern Interpretation- Segment 01: 1901-1910”, Journal of International Bloodstain Analysts-IABPA, Vol. 08, #4, Dec. 1992;
  • Kathrin Yen, Michael J. Thali, Beat P. Kneubuehl, Oliver Peschel, Ulrich Zollinger, Richard Dirnhofer, “Blood Spatter Patterns – Hands Hold Clues for the Forensic Reconstruction of the Sequence of Events”, American Journal of Forensic Medicine and Pathology, Vol. 24, No. 2, June 2003;
  • https://www.law.umich.edu/special/exoneration/Pages/casedetail.aspx?caseid=4291 acessado em 22/10/2017;
  • http://karelatheredhawk.tumblr.com/post/81827166274/fuckyeahforensics-in-1895-dr-eduard-piotrowski acessado em 22/10/2017.